
O sarampo representa um exemplo paradigmático de um desafio de saúde pública do século XXI. Trata-se de uma doença viral de alta morbimortalidade que é, no entanto, inteiramente prevenível por meio de uma vacina segura e eficaz, disponível há décadas.
Por que isso aconteceu?
O seu ressurgimento em escala global não reflete uma falha da ciência médica, mas sim das estratégias de implementação de saúde pública, sendo um marcador direto da queda nas coberturas vacinais e da fragilidade dos sistemas de vigilância. A reemergência do sarampo, mesmo em países que haviam alcançado sua eliminação, serve como um alerta contundente sobre a necessidade de vigilância contínua e do combate à desinformação que mina a confiança nas vacinas.
A Situação Global: Uma Crise de Imunização
A circulação do vírus do sarampo em nível global é extensa e persistente. Em 2025, até 9 de setembro, foram notificados 360.321 casos suspeitos em 173 países, dos quais 164.582 (45,6%) foram confirmados laboratorialmente. Esta disseminação geográfica ampla indica a existência de múltiplos bolsões de populações suscetíveis.
O Panorama nas Américas: A Fragilidade da Eliminação
A Região das Américas, que já foi um exemplo de sucesso no controle do sarampo, enfrenta um ressurgimento dramático. Em 2025, até a Semana Epidemiológica (SE) 37, foram confirmados 11.313 casos e 23 óbitos na região. Este número representa um aumento exponencial de 31 vezes em comparação com os 358 casos notificados no mesmo período de 2024, evidenciando uma rápida deterioração do controle da doença. Os países mais afetados são o Canadá (4.849 casos), o México (4.553 casos) e os Estados Unidos (1.454 casos), nações que anteriormente haviam eliminado a transmissão endêmica.
A OPAS atribui este cenário a uma confluência de fatores de risco. A contínua circulação global do vírus garante a importação constante de casos. Internamente, a queda na cobertura vacinal criou “bolsões de suscetibilidade” em comunidades específicas, como menonitas e populações indígenas, que têm sido desproporcionalmente afetadas. O aumento da mobilidade populacional facilita a disseminação do vírus entre essas comunidades vulneráveis, e a semelhança dos sintomas com outras doenças endêmicas, como a dengue, pode atrasar o diagnóstico e a implementação de medidas de controle. Os dados epidemiológicos confirmam a causa raiz do problema: 71% dos casos ocorreram em pessoas não vacinadas, e em 18% o status vacinal era desconhecido, sublinhando que a vacinação é o principal e mais eficaz fator de proteção.
Brasil: Entre a Certificação e a Vigilância Constante
O Brasil vivencia um ciclo de eliminação e reintrodução que ilustra a precariedade do controle do sarampo na ausência de altas coberturas vacinais. O país recebeu a certificação de eliminação do vírus em 2016, mas a perdeu em 2019 após um surto de grandes proporções, com mais de 20.000 casos causados pela circulação sustentada do genótipo D8. Após intensos esforços de vacinação e vigilância, o Brasil recuperou a certificação em novembro de 2024.

Apesar da recertificação, o risco de reintrodução permanece elevado. Em 2024, foram confirmados cinco casos, a maioria importados. O cenário de 2025 demonstra a contínua vulnerabilidade: até a SE 35, foram confirmados 24 casos esporádicos, distribuídos no Distrito Federal, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, e um surto significativo com 19 casos em uma comunidade no município de Campos Lindos, Tocantins. A vigilância genômica tem sido uma ferramenta epidemiológica crucial, identificando o genótipo B3 em um caso com histórico de viagem ao Paquistão e o genótipo D8 em casos com histórico de viagem à Europa. Isso confirma a origem externa das infecções e reforça a necessidade de uma vigilância robusta em portos, aeroportos e fronteiras.
Patogênese e Transmissão
Nós já discutimos um pouco sobre o diagnóstico diferencial de algumas doenças exantemáticas aqui! Mas a eficiência de transmissão do sarampo e seu profundo impacto no sistema imunológico do hospedeiro evidenciam a importância de compreender essa grave doença e explorar a necessidade imperativa da vacinação.
- O Agente Etiológico e Mecanismos de Entrada
O sarampo é causado por um vírus RNA de fita simples e envelope, pertencente ao gênero Morbillivirus e à família Paramyxoviridae. O ser humano é o único reservatório natural conhecido, o que, em teoria, torna a doença erradicável, desde que a imunidade populacional seja mantida em níveis elevados. A porta de entrada do vírus é a mucosa do trato respiratório superior ou conjuntiva, após a inalação de gotículas ou aerossóis contaminados.
O vírus não infecta indiscriminadamente as células epiteliais. Sua adsorção é mediada pela glicoproteína de superfície viral hemaglutinina (H), que se liga com alta afinidade a receptores específicos na célula hospedeira. Um dos principais receptores é a proteína CD150 (também conhecida como SLAMF1), que é expressa predominantemente em células do sistema imunológico, como linfócitos T e B, macrófagos e células dendríticas. Esse tropismo celular inicial explica por que o sistema linfoide é o primeiro e principal alvo do vírus, um fato com profundas implicações para a patogênese da doença.

Citopatológico de infecção por Morbillivirus. Fonte: https://share.google/images/3mlenSRt7sftpMWcD
- Viremia e Disseminação Sistêmica
Após a infecção inicial das células imunes no epitélio respiratório, o vírus se dissemina para os linfonodos regionais, onde ocorre uma intensa replicação. Essa amplificação local é seguida por uma viremia primária, na qual o vírus, transportado dentro de linfócitos infectados, se espalha por todo o corpo. Ele atinge tecidos linfoides secundários como o baço, a medula óssea e o timo, além de se disseminar para múltiplos órgãos, incluindo pele, rins, fígado e trato gastrointestinal.
Uma característica central da patogênese do sarampo é a infecção das células endoteliais (que revestem os vasos sanguíneos) e epiteliais em diversos locais. Isso resulta em uma vasculite generalizada, uma inflamação dos pequenos vasos sanguíneos, que é a base fisiopatológica para muitas das manifestações clínicas da doença, incluindo o exantema cutâneo característico e as manchas de Koplik na mucosa oral.

Manchas de Koplik. Fonte: https://share.google/images/h5CKJB0AUgCbkzkwm
- Imunossupressão Profunda e Transitória
O sarampo induz um estado paradoxal de forte resposta imune, que é necessária para eliminar o vírus e confere imunidade vitalícia, mas ao mesmo tempo causa uma imunossupressão profunda e clinicamente significativa. O mecanismo central dessa imunossupressão é a infecção direta e a destruição de linfócitos T (tanto CD4+ quanto CD8+) e células apresentadoras de antígenos, como as células dendríticas. Isso leva a uma linfopenia acentuada e a uma supressão da hipersensibilidade do tipo tardia, prejudicando a capacidade do corpo de responder a outros patógenos.
Este fenômeno, por vezes chamado de “amnésia imunológica”, é a principal causa da alta morbimortalidade associada ao sarampo. A imunossupressão predispõe os pacientes a infecções bacterianas secundárias graves, que são as complicações mais comuns e letais da doença.
- Dinâmica de Transmissão
A transmissão do sarampo ocorre de pessoa a pessoa, por via aérea, através de gotículas respiratórias e, crucialmente, por aerossóis que são expelidos ao tossir, espirrar ou falar. O vírus é notavelmente resistente no ambiente, podendo permanecer viável e infeccioso em aerossóis por até duas horas em um ambiente fechado. Isso permite a transmissão mesmo sem contato direto com a pessoa infectada, bastando compartilhar o mesmo espaço aéreo.
Apresentação Clínica e Evolução da Doença
O sarampo clássico segue uma progressão clínica previsível e bem definida, dividida em fases distintas. O reconhecimento dessa cronologia é uma ferramenta diagnóstica poderosa para o clínico.
- Período de Incubação
Após a exposição ao vírus, segue-se um período de incubação que varia de 7 a 21 dias, com uma média de 10 a 12 dias, até o início dos primeiros sintomas. Durante esta fase, o paciente está assintomático, mas o vírus está se replicando ativamente no sistema reticuloendotelial.
- Fase Prodrômica (Catarral)
Esta fase dura de 2 a 8 dias, com uma média de 6 dias, e precede o aparecimento do exantema. É caracterizada por sintomas sistêmicos e o envolvimento das mucosas. A sintomatologia clássica inclui:
- Febre
- Mal-estar
- A Tríade Clássica (“3 Cs”):Cough (Tosse),Coryza (Coriza),Conjunctivitis (Conjuntivite)
A combinação desses achados confere ao paciente uma aparência característica, descrita classicamente como “fácies sarampenta”.
- O Sinal de Koplik: O Enantema Patognomônico
Durante a fase prodrômica tardia, um achado patognomônico do sarampo pode ser observado: o sinal de Koplik. São pequenas manchas branco-azuladas, com cerca de 1 a 2 mm de diâmetro, sobre uma base eritematosa, que se assemelham a “grãos de areia”. Localizam-se tipicamente na mucosa jugal (parte interna das bochechas), na altura dos segundos molares inferiores. Este enantema surge 24 a 48 horas antes do início do exantema cutâneo e geralmente desaparece 1 a 2 dias após o rash aparecer. Sua identificação é de grande valor clínico, pois permite um diagnóstico presuntivo precoce e o início imediato de medidas de saúde pública.

- Fase Exantemática
O exantema maculopapular eritematoso surge aproximadamente 2 a 4 dias após o início da febre. A sua progressão é altamente característica:
- Início: Começa na face, tipicamente na região retroauricular e ao longo da linha de implantação do cabelo.
- Progressão: Espalha-se em direção craniocaudal e centrífuga, atingindo o pescoço, o tronco, os membros superiores e, por fim, os membros inferiores ao longo de 2 a 3 dias. As lesões podem se tornar confluentes, especialmente na face e no tronco.
O pico da doença ocorre no segundo ou terceiro dia do exantema. Neste momento, a febre atinge seu valor máximo (podendo ultrapassar ), o rash é exuberante e confluente, e o paciente apresenta prostração intensa.
- Período de Convalescença (Descamação)
Após 3 a 5 dias do início do exantema, a febre começa a ceder e os sintomas regridem. O exantema começa a desaparecer na mesma ordem em que surgiu (craniocaudal). À medida que as lesões regridem, elas deixam uma coloração acastanhada transitória (hiperpigmentação pós-inflamatória) e uma descamação fina, semelhante a farelo, conhecida como “descamação furfurácea“. Um sinal clínico de alerta importante é a persistência da febre por mais de 3 a 4 dias após o início do exantema. Este achado não faz parte da evolução natural da doença e sugere fortemente a presença de uma complicação, como pneumonia ou otite média bacteriana secundária.

Abordagem Diagnóstica
O diagnóstico do sarampo envolve uma abordagem escalonada, começando com a suspeita clínica baseada na apresentação clássica e culminando na confirmação por métodos laboratoriais, que são o padrão-ouro.
Um caso suspeito de sarampo é definido como:
- Todo paciente que apresentar febre e exantema maculopapular, acompanhados de um ou mais dos seguintes sinais e sintomas: tosse, coriza ou conjuntivite, independentemente da idade e da situação vacinal.
Devido ao seu potencial para causar surtos, todo caso suspeito de sarampo é de notificação compulsória e imediata.
Embora o diagnóstico clínico seja sugestivo, a confirmação laboratorial é fundamental para a vigilância epidemiológica, especialmente em cenários de baixa incidência, onde outras doenças exantemáticas são mais comuns. As amostras para análise devem ser coletadas idealmente no primeiro contato com o paciente.
- Sorologia (Técnica ELISA): A detecção de anticorpos específicos é um pilar do diagnóstico.
- Detecção Molecular (RT-PCR):
- A Reação em Cadeia da Polimerase com Transcrição Reversa (RT-PCR)
- As amostras de escolha são swabs combinados de nasofaringe e orofaringe, ou amostras de urina, coletadas preferencialmente nos primeiros dias da doença.
- Além da confirmação diagnóstica, o RT-PCR é essencial para a vigilância genômica.
Quais as possíveis complicações?
A. Respiratórias
- Pneumonia: É a complicação mais frequente e a principal causa de morte associada ao sarampo em crianças. Pode se apresentar de duas formas principais:
- Pneumonia Intersticial Viral Primária: Causada pela replicação direta do vírus do sarampo no parênquima pulmonar.
- Pneumonia Bacteriana Secundária: Mais comum, é uma consequência direta da imunossupressão induzida pelo vírus. Os agentes etiológicos mais frequentes são Streptococcus pneumoniae, Haemophilus influenzae e Staphylococcus aureus.
- Laringotraqueobronquite (Crupe): A inflamação da laringe, traqueia e brônquios pode levar à obstrução das vias aéreas superiores, causando estridor e insuficiência respiratória.
B. Complicações Neurológicas
O envolvimento do sistema nervoso central (SNC) pelo sarampo pode ser devastador.
- Encefalite Aguda Pós-Infecciosa (Encefalomielite Disseminada Aguda – ADEM): Clinicamente, manifesta-se dias após o início do exantema com febre, cefaleia, convulsões e alteração do nível de consciência. A mortalidade é significativa, e cerca de 25% dos sobreviventes podem apresentar sequelas neurológicas permanentes.
- Panencefalite Esclerosante Subaguda (PEES): Esta é uma complicação rara, tardia e invariavelmente fatal. Trata-se de uma doença neurodegenerativa progressiva causada pela persistência de um vírus do sarampo defectivo no SNC.
C. Outras Complicações Comuns
- Otite Média Aguda
- Diarreia e Desidratação
- Ceratoconjuntivite e Cegueira
Manejo Clínico e Tratamento
Atualmente, não existe uma terapia antiviral específica para o sarampo. Portanto, o manejo clínico é primariamente de suporte, com foco no alívio dos sintomas, na manutenção do estado geral do paciente e na prevenção, detecção e tratamento precoce das complicações.
O tratamento de suporte é a base do manejo de casos não complicados de sarampo e inclui:
- Hidratação e Nutrição
- Controle da Febre e do Mal-Estar
- Manejo dos Sintomas Respiratórios
A Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Ministério da Saúde do Brasil recomendam a administração de vitamina A para todas as crianças diagnosticadas com sarampo, independentemente de seu estado nutricional aparente. O esquema posológico recomendado consiste em duas doses orais, administradas com 24 horas de intervalo:
- Crianças menores de 6 meses: 50.000 UI por dia, por 2 dias.
- Crianças de 6 a 11 meses: 100.000 UI por dia, por 2 dias.
- Crianças com 12 meses ou mais: 200.000 UI por dia, por 2 dias.
No Brasil, o Ministério da Saúde organiza a logística de distribuição de cápsulas de vitamina A para os estados que enfrentam surtos, com protocolos que preveem a administração da primeira dose na unidade de saúde e a segunda em domicílio, para minimizar o risco de transmissão.
Prevenção e Controle
A estratégia mais eficaz, segura e custo-efetiva para o controle do sarampo é a imunização em massa. A vacinação é a pedra angular da prevenção e a única ferramenta capaz de levar à eliminação da doença.
As vacinas disponíveis no Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Brasil são:
- Tríplice Viral (SCR): Protege contra Sarampo, Caxumba e Rubéola.
- Tetra Viral (SCR-V): Protege contra Sarampo, Caxumba, Rubéola e Varicela.
Esquema Vacinal no Brasil (Programa Nacional de Imunizações – PNI)
O esquema vacinal do PNI é uma estratégia populacional dinâmica, projetada para proteger indivíduos em diferentes fases da vida e se adaptar a cenários epidemiológicos variáveis.
- Esquema Padrão para Crianças:
- Primeira dose: Aos 12 meses de idade, com a vacina Tríplice Viral (SCR).
- Segunda dose: Aos 15 meses de idade, com a vacina Tetra Viral (SCR-V), que funciona como reforço para SCR e primeira dose para varicela.
- “Dose Zero”: Em situações de surto de sarampo, o Ministério da Saúde pode recomendar a administração de uma dose da vacina Tríplice Viral para crianças entre 6 e 11 meses de idade. Esta dose visa oferecer proteção precoce aos lactentes jovens, que são particularmente vulneráveis a complicações. É importante ressaltar que esta “dose zero” não substitui as doses do calendário de rotina; a criança ainda deverá receber as vacinas aos 12 e 15 meses.
- Vacinação de Adolescentes e Adultos (Catch-up): Para fechar as lacunas de imunidade em coortes mais velhas, o PNI estabelece:
- Pessoas de 1 a 29 anos: Devem ter duas doses da vacina Tríplice Viral comprovadas, com um intervalo mínimo de 30 dias entre elas.
- Pessoas de 30 a 59 anos: Devem ter uma dose da vacina Tríplice Viral comprovada.
- Profissionais de Saúde: Devido ao maior risco de exposição e transmissão, devem ter duas doses da vacina comprovadas, independentemente da idade.
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