Situação hipotética: por conta de uma neoplasia de tireoide, seu paciente foi submetido à excisão total da glândula. De madrugada, te chamam para avaliá-lo, pois está se queixando de dormência em extremidades e espasmos musculares. Você sabe o que está acontecendo? Sabe o que fazer? É o que revisaremos neste artigo.
A complicação aguda mais comum da tireoidectomia é a flutuação dos níveis de cálcio sérico secundária ao hipoparatireoidismo, cuja incidência varia com a literatura, mas pode atingir até 15% dos pacientes. Existem várias classificações do hipoparatireoidismo secundário à tireoidectomia, mas o que importa a esta discussão é o hipoparatireoidismo transitório, definido como insuficiência paratireoidea com repercussão clínica e laboratorial (baixos níveis séricos de hormônio paratireoideo – PTH, e de cálcio) que inicia após a cirurgia e dura menos de 6 meses.
De maneira geral, o problema do hipoparatireoidismo pós-cirúrgico reside no ato operatório em si. Sabemos que o suprimento sanguíneo das paratireoides é extremamente delicado, o que facilita lesão, seja por dano direto da vasculatura ou indireto (lesão térmica por eletrocautério). Também há risco de exérese inadvertida de uma ou mais glândulas paratireoideas.
Os sintomas são decorrentes dos baixos níveis de cálcio. Os mais comuns estão relacionados à hiperexcitabilidade neuronal, o que explica as parestesias, cãibras e dormência, geralmente iniciam na região perioral e nas pontas dos dedos. Espasmos musculares e rigidez muscular também são comuns. Quando grave, a hipocalcemia pode levar à tetania espástica, laringoespasmo e convulsões, situações ameaçadoras da vida.
Dois sinais semiológicos clássicos que as provas de residência gostam de nos lembrar são os sinais de Trousseau e de Chvostek. O sinal de Trousseau é a contratura espástica carpopedal quando ocorre oclusão da artéria braquial mediante insuflação do manguito do esfigmomanômetro em valores superiores à pressão sistólica por 3 minutos. Já o sinal de Chvostek é a contratura facial após percussão do trajeto do nervo facial na região pré-auricular. Apesar de clássicos, são incomuns.
Outra complicação importantíssima da hipocalcemia é a instabilidade elétrica cardíaca. O prolongamento do intervalo QT (tempo entre despolarização e repolarização ventricular) predispõe a arritmias malignas, notavelmente a Torsades des Pointes, uma taquicardia ventricular polimórfica que pode degenerar para fibrilação ventricular e parada cardíaca.
Sem contar na influência do cálcio como cofator para coagulação. A hipocalcemia aumenta o tempo de coagulação ativada e predispõe mais sangramentos e formação de hematoma no sítio cirúrgico. Um hematoma na região cervical, por compressão dos vasos da bainha carotídea e da traqueia, é potencial ameaçador da vida.
Tratamento
Em resumo, vemos que as complicações relacionadas aos baixos níveis de cálcio sérico podem ser bem sérias. E o que fazer diante desta situação? A primeira coisa a se fazer, como diria um chefe meu na residência, é a “profilaxia da incomodação”.
Em 1º lugar, seguir a técnica cirúrgica e ter profundo conhecimento da anatomia da região é fundamental, para evitar lesões ou ressecções iatrogênicas. Ao extrair a tireoide após sua exérese, é sempre bom revisar o espécime cirúrgico à procura de tecido paratireoideo ressecado inadvertidamente. Algumas revisões apontam que o baixo volume cirúrgico do serviço é fator de risco para hipoparatireoidismo pós-cirúrgico.
Em 2º lugar, é ideal realizar monitorização dos níveis do cálcio no pós-operatório, com a 1ª coleta em torno de 4 a 6h após a cirurgia, para flagrar a hipocalcemia leve antes dos sintomas se instalarem. Alguns serviços já indicam suplementação de cálcio de rotina e suplementação adicional caso desenvolvam sintomas ou a bioquímica revele hipocalcemia.
Caso o paciente seja do grupo de risco para hipoparatireoidismo pós-operatório (população pediátrica, aqueles submetidos à tireoidectomia total devido doença de Graves, dissecção extensa ou bilateral etc.), já tenha história, nos exames pré-operatórios, de níveis baixos de vitamina D (ou normais, mas próximos do limite inferior), ele também se beneficia de suplementação com calcitriol.
Em geral, os níveis de cálcio sérico estão normais quando entre 8,5 e 10 mg/dL. Quando abaixo de 8,0 mg/dL, geralmente já notamos sintomas da hipocalcemia. Os efeitos fisiológicos são mais dependentes da velocidade de instalação da hipocalcemia do que dos valores em si e distúrbios associados (desequilíbrio ácido-básico e hipomagnesemia) acentuam este efeito.
As opções de prescrição no pós-operatório imediato para aqueles que se apresentam com hipocalcemia são:
– Carbonato de Cálcio 1250 mg (equivale a 500 mg de cálcio elementar): 1 a 2 cp/dia.
O carbonato de cálcio necessita de meio ácido para sua absorção. Esteja atento aos usuários crônicos de inibidores de bomba de prótons ou outras condições que possam levar à hipocloridria. Nestes casos, existe a opção de reposição com citrato de cálcio (dose varia com a formulação, mas deve ser o suficiente para fornecer um equivalente de 500 a 1000 mg de cálcio elementar, em geral também é 1 a 2 cp/dia).
– Calcitriol 0,25 mcg/cp: 1 a 2 cp VO de 12/12h.
Ambos podem ser usados profilaticamente, seja rotina do serviço ou indicado apenas nos pacientes de maior risco. Para aqueles que se apresentem com as formas graves da hipocalcemia (tetania espástica, convulsões, arritmias cardíacas) ou estão refratários à reposição de cálcio e calcitriol, deve ser realizada reposição por via intravenosa com gluconato de cálcio. Dependendo da gravidade da hipocalcemia (Ca < 7,5 mg/dL), recomendamos iniciar direto com reposição combinada de cálcio, IV e VO.
– Gluconato de Cálcio 10% (1 amp tem 1 g de gluconato de cálcio em 10 mL, equivalente a 90 mg de cálcio elementar): Diluir 2 ampolas em 50 mL de SF 0,9% ou SG 0,5% e infundir IV em pelo menos 20 min (idealmente utilizar bomba de infusão, pois infusões mais rápidas estão associadas à tromboflebite e arritmias cardíacas). Novas infusões podem ser necessárias.
– Cloreto de Cálcio 10% (1 amp corresponde a 270 mg de cálcio elementar em 10 mL): Diluição e administração equivalente ao do gluconato. Cuidado com risco de extravasamento, pois o cloreto de cálcio causa necrose tecidual.
Se o paciente se mantiver com hipocalcemia resistente, é necessário manter infusão contínua de cálcio elementar na dose de 0,5 a 1,5 mg/kg/h, até normalização dos níveis de cálcio. Uma maneira de preparar a solução contínua é a seguinte:
– Gluconato de Cálcio 10% 11 amp (110 mL) + 890 mL de SF 0,9% ou SG 5% (solução aproximada de 1 mg/mL de cálcio elementar). A dose fica, portanto, de 0,5 a 1,5 mL/kg/h. Em geral, dá para começar com 50 mL/h e ir ajustando conforme dosagens de calcemia subsequentes.
Em geral, a correção dos níveis de cálcio é rápida, não prolongando a internação por mais que 2 ou 3 dias. Nos casos graves e refratários, o paciente deve ser admitido em UTI para monitorização frequente.
Sempre checar demais eletrólitos e equilíbrio ácido-básico (principalmente magnésio, potássio e fosfato) e realizar correções conforme necessário. Manter carbonato de cálcio e calcitriol para a alta hospitalar, com retorno precoce e com exames laboratoriais (incluindo dosagem de vit. D, PTH) para manejo do hipoparatireoidismo pós-operatório. A discussão do hipoparatireoidismo persistente (> 6 meses) é mais complexa e fica para outro momento.
Take-Home Messages:
– Hipocalcemia é complicação comum no pós-cirúrgico de tireoidectomia;
– Sintomas podem ser variados, desde leves (espasmos, parestesias) à sintomas graves que ameaçam a vida (tetania, laringoespasmo, convulsões, arritmias e parada cardíaca);
– A reposição de cálcio deve ser guiada pelos sintomas e pelas dosagens de cálcio sérico;
– Casos leves devem ser tratados com reposição de cálcio (carbonato de cálcio, citrato de cálcio) e calcitriol, ambos via oral.
– Casos graves e os refratários devem ser tratados com a opção anterior + reposição intravenosa de cálcio (formulações com gluconato e cloreto de cálcio são as mais comuns). Doses vide texto.
– Sempre checar distúrbios associados.
Referências do Texto
Orloff, LA et al. American Thyroid Association Statement on Postoperative Hypoparathyroidism: Diagnosis, Prevention, and Management in Adults. Thyroid, 2018. 28(7), 830–841.
Lukinović J, Bilić M. Overview of Thyroid Surgery Complications. Acta Clin Croat. 2020 Jun;59(Suppl 1):81-86.
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Suh, I, Sosa JA. Thyroid in: Sabiston Textbook of surgery: the biological basis of modern surgical practice. 21th Ed. Elsevier, 2022.
Junior, JMV, de Azevedo, LCP. Distúrbios eletrolíticos in: Medicina intensiva: abordagem prática. 2ª Ed. Manole, 2015.
Neto, RAB, Marino LO. Hipocalcemia in: Medicina de Emergência: abordagem prática. 14ª Ed. Manole, 2020.
Por Diego Vitor Barbosa Fernandes
Médico – UFPB
Cirurgião Geral – HG de Caxias do Sul
MR Cirurgia Cardiovascular – Instituto de Cardiologia do RS
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