CIV pós-infarto – o que a literatura tem a nos dizer?

Que o infarto é um evento catastrófico, até a população geral sabe. Mas você conhece as complicações mecânicas do infarto agudo do miocárdio (IAM)?

 

São elas a ruptura do septo interventricular (IV), a ruptura de parede livre do ventrículo esquerdo (VE), insuficiência mitral (IMi) aguda secundária à ruptura de músculo papilar e formação de aneurisma de VE. Neste post vamos focar na primeira delas.

 

 

A ruptura do septo IV pós-IAM é também conhecida como comunicação interventricular (CIV) pós-IAM. As complicações mecânicas são potencialmente letais e, das mencionadas anteriormente, a CIV é a mais comum de todas, por isso vamos focar nela.

 

 

 

Epidemiologia

A CIV pós-IAM é um evento raro. Ocorre 3 eventos para cada 1000 IAM, sendo a maior parte dos casos IAM com supra de ST (IAMCSST), > 2/3 dos casos. Com o advento da terapia de reperfusão, sua incidência diminuiu ao longo dos anos, atingindo um platô em torno de 0,3-0,5% desde o início do século XXI.

 

Um dos maiores databases sobre infarto agudo do miocárdio foi o estudo liderado pelo Elbadawi (cf. [1]), Temporal Trends and Outcomes of Mechanical Complications in Patients With Acute Myocardial Infarction, que analisou mais de 9 milhões de internações por IAM nos EUA entre 2003 e 2015. Contatou-se ocorrência de complicações mecânicas em 0,27% dos IAMCSST, sendo 0,21% destes ruptura do septo IV. Nos casos de infarto agudo do miocárdio sem supra de ST (IAMSSST), ocorreram complicações mecânicas em 0,06% dos casos, sendo a CIV pós-IAM responsável por 0,04% dos casos. Percebam a predominância da CIV em relação às outras complicações mecânicas.

 

 

Prognóstico

A mortalidade intra-hospitalar ainda hoje é alta, mesmo com o suporte intensivo atual. Das mortes relacionadas ao IAM, 10-15% são devido às complicações mecânicas. O paciente que se apresenta com ruptura do septo IV e choque cardiogênico tem risco de óbito de quase 90%!

 

Uma coisa é certa: o tratamento definitivo é intervenção pela cirurgia cardíaca. A mortalidade é de 90% em 2 meses sem reparo cirúrgico. Porém, a gravidade com que estes pacientes se encontram eleva muito o risco do próprio procedimento. Até 50% dos pacientes vai à óbito mesmo se operados em momento oportuno. A média de mortalidade entre as melhores fontes é de 20 a 50%.

 

A apresentação de CIV pós-IAM associada à choque cardiogênico, lesão renal aguda, necessidade de hemodiálise ou presença de complicações respiratórias é definidora de mal prognóstico per se.

 

 

Características

O tempo entre o momento do infarto agudo e a detecção de ruptura do septo IV é bimodal. O primeiro pico de incidência é em torno das primeiras 24h e o segundo pico ocorre cerca de 3-5 dias após o evento. O intervalo onde ocorre 95% dos casos está entre um e 14 dias da data do infarto.

 

A irrigação septo IV tem seus 2/3 anteriores devido à ramos septais da artéria descendente anterior (a. DA). A presença de infarto anterior ou anterior extenso, portanto, é fator de risco para ocorrência de CIV pós-IAM. O terço posterior é irrigado por ramos septais da artéria descendente posterior, ramo da coronária direita. O tamanho do orifício determina a magnitude do shunt esquerda-direita, o que impacta diretamente na apresentação clínica.

 

A ruptura é do septo é na margem entre o miocárdio saudável e necrótico e ela pode se apresentar como um orifício simples ou serpentar o septo, causando um defeito mais extenso e de correção mais complexa. Felizmente, a maioria dos casos se apresentam com orifícios de até 1 cm de diâmetro.

 

Os principais fatores de risco para CIV pós-IAM é doença uniarterial, principalmente quando envolve a artéria DA. O estudo GUSTO I Trial relacionou a ruptura do septo com infartos anteriores 70% das vezes, com infarto inferior em 2º lugar, 29% das vezes. Quanto maior o dano miocárdico, maior o risco. A presença de má circulação colateral septal é determinante para a ocorrência do evento.

 

 

Manifestações Clínicas

Conforme mencionado antes, a magnitude do shunt determina o quadro clínico, que é extremamente variável, desde dispneia leve até choque cardiogênico.

 

O sinal mais comum e que deve soar como um alerta vermelho na sua cabeça é a presença de SOPRO NOVO.     Em geral, o sopro da CIV pós-IAM é um sopro áspero, alto, holossistólico (o que faz sentido, já que o gradiente aumenta subitamente durante a contração do VE, pois não existe mais período de contração isovolumétrica, já que parte do volume está se desviando para o ventrículo direito). Este sopro é mais audível na borda esternal esquerda, mas pode ser ouvido no ictus cordis, simulando o sopro da insuficiência mitral aguda (outra complicação mecânica e diagnóstico diferencial).

 

Ocorre frêmito associado ao sopro em 50% dos casos e, em geral, nota-se precórdio hiperdinâmico. Em questão de horas a dias o paciente vai, gradualmente, evoluindo para insuficiência cardíaca biventricular, com predominância de insuficiência ventricular direita. Quando há comprometimento hemodinâmico, são comuns hipotensão e taquicardia, que prenunciam o choque cardiogênico.

 

 

Diagnóstico

A suspeição clínica é a chave! Um paciente infartado que se apresenta com sopro novo, deterioração clínica, sinais de insuficiência cardíaca e/ou choque cardiogênico é um paciente de risco para complicações mecânicas. Nestes casos, está mais que indicada a realização de ecocardiografia, que geralmente é diagnóstica da condição (mesmo a transtorácica). Além disso, já pode trazer outros dados como áreas hipocinéticas ou acinéticas, fração de ejeção, medidas dos gradientes, presença de outras complicações associadas etc.

 

A cineangiocoronariografia (cateterismo cardíaco, CATE) também costuma demonstrar o defeito, mas, por ser mais invasivo, costuma não ser realizada com finalidade diagnóstica. Todavia, se porventura o paciente infartado foi encaminhado para serviço de hemodinâmica, a realização da ventriculografia durante o CATE pode flagrar o diagnóstico.

 

 

Tratamento

Aqui reside a controvérsia da literatura. Não sobre o que fazer, mas quando fazer. O que fazer já sabemos: o tratamento envolve correção cirúrgica do defeito. O quando fazer é um assunto mais delicado.

 

O paciente com CIV pós-IAM é um paciente de alto risco para desfecho fatal. Logo, é necessária uma conversa delicada com paciente e familiares junto à uma equipe multidisciplinar. O tratamento cirúrgico pode ser uma medida fútil para alguns pacientes, como os muito idosos, os que se apresentam com severa disfunção de VE ou aqueles que já demonstram insuficiência múltipla de órgãos. O risco de não sobreviverem nem à indução anestésica é muito alto, imagina associar reparo cirúrgico num miocárdio infartado e em circulação extracorpórea. Assim, às vezes, a melhor alternativa é instituir cuidados paliativos e prover conforto, apoio psicológico e alívio do sofrimento.

 

Para os demais pacientes, que julgamos elegíveis ao tratamento cirúrgico, o suporte intensivo deve ser instituído desde o diagnóstico. O uso precoce de agentes inotrópicos e vasopressores serve para estabilizar o paciente. Se necessário, pode ser usado dispositivos de assistência circulatória, como o balão intra-aórtico (BIAo) por exemplo.

 

Em 2012, a Society of Thoracic Surgeons publicou uma análise dos resultados cirúrgicos da correção do defeito septal pós-IAM (cf. [2]). Foram quase 3 mil pacientes no estudo submetidos à cirurgia entre 1999 e 2010. Foi observado um padrão interessante. A mortalidade geral foi de 42,9%, sendo que metade dos óbitos ocorreu nos pacientes submetidos à reparo cirúrgico precoce: 54,1% de mortalidade para operados em < 7 dias do evento cardiovascular.

 

A mortalidade no grupo tardio foi de 18,4%. Também houve queda progressiva da chance do óbito com o passar do tempo. A mortalidade cirúrgica nos pacientes submetidos a intervenção com < 6h teve um odds ratio (OR) de 6.18, entre 6 e 24h, OR 5.53, entre 1 e 7 dias, OR 4.59 e para os operados entre 8 e 21 dias, OR de 2.37, todos com p < 0,01.

 

Os fatores de risco para mortalidade perioperatória foram: (1) choque cardiogênico à admissão, (2) necessidade de BIAo no pré-operatório (denotando maior gravidade), (3) pacientes já submetidos à cirurgia cardíaca previamente por outro motivo (revascularização, troca valvar etc.), (4) operados em status emergencial (cirurgia precoce), (5) necessidade de diálise pré-operatória.

 

Por alguns anos, após a publicação dos dados, foi aventada a hipótese de que cirurgia tardia (após 21 dias do evento) seria benéfica, porque permitia “fibrose do septo”, enquanto operar precocemente era dar de cara com um coração friável. Novos dados sugerem, na realidade, que o fato da mortalidade dos operados tardiamente ser menor que operados precocemente pode ser um viés de seleção da amostra.

 

Isso porque os pacientes mais graves à admissão são aqueles que tem sua cirurgia indicada precocemente, ocorrendo em até 24h do evento. Já os pacientes mais estáveis, com gradiente mínimo, pouco sintomáticos, eram deixados para operar tardiamente e, por consequência, tinham menor mortalidade, não apenas porque “fibrosou” o septo, mas também porque tinham defeito septal mínimo. Qual fator impacta mais na decisão de operar então?

 

Isso permanece controverso e há evidências para os dois lados. O que a maioria dos guidelines sobre o tema sugere é: não retardar abordagem cirúrgica para permitir “fibrose do septo”. Isso porque, inevitavelmente os pacientes com CIV pós-infarto vai evoluir com sintomas de insuficiência cardíaca progressiva, insuficiência múltipla de órgãos e risco de infecção (tempo prolongado de UTI, ventilação mecânica etc.). Todavia, se o paciente estiver estável o suficiente, é possível retardar o reparo cirúrgico enquanto permanecer assim.

 

 

Reparo Cirúrgico Aberto ou Percutâneo?

Até hoje, os resultados cirúrgicos seguem subótimos. A alta mortalidade associada ao perioperatório e a possibilidade de permanecer shunt residual são questões que estimulam a busca por novas alternativas. O que muito se estuda hoje é a possibilidade de tratamento percutâneo do defeito como uma alternativa ao procedimento aberto.

 

Qual o maior empecilho até então? A incidência de CIV pós-IAM é muito baixa. Apesar de ser a complicação mais comum, ainda assim, o número de pacientes é pequeno, 3 para cada 1000 infartos como vimos no começo. Destes pacientes, quantos estarão em centros com cirurgiões treinados em fechamento percutâneo? O número se reduz mais ainda.

 

Logo, não temos tantos estudos sobre o fechamento percutâneo. Sem falar que ele está associado à várias complicações porque falta expertise dos profissionais no tema. Logo, a comparação com a cirurgia direta com a cirurgia aberta é insatisfatória. Ou seja, não temos evidências suficientes para indicar fechamento percutâneo em vez de reparo cirúrgico convencional.

 

 

Take-Home Messages:

– Ruptura do septo interventricular (IV) ou comunicação interventricular (CIV) pós-infarto agudo do miocárdio é uma complicação mecânica potencialmente fatal;

 

– Suspeitar sempre de CIV pós-IAM em paciente com sopro novo ou que repentinamente apresenta deterioração clínica, insuficiência cardíaca ou choque cardiogênico;

 

– O tratamento padrão é o reparo cirúrgico convencional. Não há boas evidências ainda que sustentem a indicação de tratamento percutâneo como primeira linha (é opção ao tratamento cirúrgico – conversar com seu paciente e família);

 

– Casos geralmente são graves e dramáticos. Abordar o tema com equipe multidisciplinar e envolver equipe de cuidados paliativos desde o início;

 

– Suporte hemodinâmico intensivo (drogas inotrópicas e vasopressores) desde o diagnóstico. Balão intra-aórtico é opção para estabilização circulatória;

 

– Choque cardiogênico à admissão, insuficiência de outros órgãos e sistemas são fatores de mal prognóstico;

 

– O tratamento é cirúrgico, mas os resultados não são animadores. Não atrasar cirurgia para permitir “fibrose do septo”, mas se seu paciente está estável o suficiente, talvez ele possa esperar, em vez de ser operado em status emergencial. É uma decisão difícil, que deve ser individualizada conforme o caso e sempre compartilhada com paciete, família e equipe multidisciplinar.

 

 

 

Referências do Texto

[1] Elbadawi A, Elgendy IY, Mahmoud K, et al. Temporal Trends and Outcomes of Mechanical Complications in Patients With Acute Myocardial Infarction. JACC Cardiovasc Interv 2019; 12:1825.

[2] Arnaoutakis GJ, Zhao Y, George TJ, et al. Surgical repair of ventricular septal defect after myocardial infarction: outcomes from the Society of Thoracic Surgeons National Database. Ann Thorac Surg 2012; 94:436.

[3] Thiele H, Kaulfersch C, Daehnert I, et al. Immediate primary transcatheter closure of postinfarction ventricular septal defects. Eur Heart J 2009; 30:81.

[4] Amit Goyal, MD; Venu Menon, MBBS, FACC. Contemporary Management of Post-MI Ventricular Septal Rupture, 2018.

[5] Guidelines on Management of Acute Myocardial Infarction in Patients Presenting with ST-Segment Elevation – ESC Clinical Practice Guidelines, 2017.

[6] V Diretriz da Sociedade Brasileira de Cardiologia sobre o Tratamento do Infarto Agudo do Miocárdio com Supradesnível do Segmento ST, 2015.

[7] Schlotter F, de Waha S, Eitel I, Desch S, Fuernau G, Thiele H. Interventional post-myocardial infarction ventricular septal defect closure: a systematic review of current evidence. EuroIntervention. 2016 May 17;12(1):94-102. doi: 10.4244/EIJV12I1A17. PMID: 27173869.

[8] ACC/AHA Guidelines for the Management of Patients With ST-Elevation Myocardial Infarction, 2004

[9] UpToDate: https://www.uptodate.com/contents/acute-myocardial-infarction-mechanical-complications

 

 

 

 

Por Diego Vitor Barbosa Fernandes
Médico – UFPB
Cirurgião Geral – HG de Caxias do Sul
MR Cirurgia Cardiovascular – Instituto de Cardiologia do RS

 

 

 

 

Você também pode gostar de: